24 de junho de 2016

Os limites entre o assédio e a cantada

A cantada pode ser uma frase, uma palavra ou até um gesto sutil de interesse, mas existe uma linha tênue que a separa do assédio sexual. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Data Popular em parceria com o Instituto Avon revela que 79% das jovens brasileiras já foram assediadas, receberam cantadas desrespeitosas ou foram abordadas de forma agressiva. As abordagens tornaram-se cada vez mais ofensivas e banais. Em entrevista, três mulheres relatam casos de assédio. As histórias são reais e impressionam. Para esclarecer a diferença entre cantada e assédio, convidamos a advogada Faena Gall Gofas, que ensina o que a vítima de assédio, seja moral ou sexual, deve fazer. A reportagem ainda revela os números dos casos de violência e denúncias de ameaça contra mulher na cidade de Cachoeira do Sul (RS).


A icônica imagem "American Girl on Italy", de Ruth Orkin (1951), mostra uma jovem passando numa esquina entre os homens em Florença. A reação não foi encenada. 

ASSÉDIO DURANTE UMA AULA

A acadêmica de Direito Myrela Rosa, 18, foi assediada por um professor durante as aulas quando tinha 12 anos de idade. A jovem relata que o professor saiu de férias e deixou outro responsável, porém se sentia desconfortável com este. "Ele costumava se insinuar e eu percebia que as mãos dele chegavam a lugares que não eram necessários", conta a estudante, que percebeu que o professor começou a passar dos limites.


Myrela ressalta a importância de incentivar as crianças a relatarem casos de assédio. "É horrível alguém tirar a tua inocência e te fazer pensar em coisas que não deveriam ser tuas preocupações pelo menos até os próximos 10, 15 anos", afirma.

CANTADAS PODEM INCOMODAR

A comerciante e acadêmica de Relações Públicas Michele de Cássia Vargas Lisbôa, 29, conta que, como toda mulher, já recebeu cantadas, mas admite que até mesmo as mais inocentes podem incomodar, afinal, nenhuma pessoa deve ser submetida a importunação. Para ela, a cantada deve ser o ato de elogiar a pessoa sem agredi-la, já o assédio é mais agressivo e explícito e sempre remete ao sexual. Michele admite que se sente incomodada com olhares maliciosos na rua. "Isso me deixa constrangida, me faz sentir nojo e perder até o jeito ao caminhar", afirma. "Nada é pior no mundo que um homem se lambendo e se apalpando nas partes íntimas enquanto te olha ou tentando tocar em você sem seu consentimento. Isso é repugnante, nojento, asqueroso e, infelizmente, corriqueiro", denuncia. 


Michele acredita que os homens devem tentar se colocar no lugar das mulheres e pensarem antes de agir e falar.

CHEGA DE FIO FIO

A estudante de Nutrição Dienifer Weirich Lopes, 20, conta que já ouviu palavras de baixo calão de pessoas que não conhece na rua, principalmente de meninos em grupos. Segundo a estudante, as frases "Que gostosa", "Essa eu pegaria" e "Me passa teu número de celular" são recorrentes nessas abordagens. "Também recebi 'Oi' juntamente com olhares ameaçadores de desconhecidos", relata Dienifer, que diz se sentir vulnerável diante dessas situações.

"Eu sempre ignoro quando escuto comentários grosseiros e os homens não fazem ideia de como as mulheres sentem-se constrangidas e humilhadas com isso", desabafa. Ela reconhece que a situação está bem complicada no dia a dia. "As pessoas estão passando dos limites na questão de tentar conquistar alguém", afirma.


"A melhor maneira de se ter respeito com os outros é pensar no que você não gostaria que lhe fizessem e não o fazer com ninguém", disse Dienifer.

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Em 2015 foram registrados 900 casos de violência (um a cada 10 horas) e 415 denúncias de ameaça contra mulher em Cachoeira do Sul. Até maio deste ano, 360 mulheres foram vítimas de violência, incluindo lesões, estupros e homicídios, além de 80 registros de ameaça.

Fonte: Polícia Civil

O QUE DIFERENCIA CANTADA DE ASSÉDIO

A advogada e mestranda em Direito Faena Gall Gofas, 25, sendo dois anos de profissão, afirma que a "cantada", no Brasil, não pode ser considerada crime. Já o assédio, que pode ser moral ou sexual, sim. Segundo a profissional, o assédio moral ocorre no ambiente de trabalho e se constitui na exposição do trabalhador (a) a uma situação humilhante e constrangedora durante a jornada de trabalho. "Trata-se de uma situação antiética que força o trabalhador a desistir do emprego", explica. Por sua vez, o assédio sexual é uma manifestação sensual ou sexual alheia à vontade da pessoa a quem se dirige. "Configura-se por meio de abordagens grosseiras, ofensas e propostas inoportunas e constrangedoras que humilham e amedrontam a vítima", frisa.


Para a advogada Faena Gofas, as mulheres devem estar atentas ao assédio e denunciarem.

Faena salienta que é essencial que qualquer investida sexual tenha o consentimento da outra parte, o que não acontece quando uma mulher é assediada. "No meu ponto de vista pessoal, nós mulheres, como cidadãs com liberdade de opinião e expressão, devemos reagir com elegância e saber dizer 'não' quando recebemos uma cantada inoportuna, resposta que deve bastar para que a mera cantada não extrapole limites e venha a configurar importunação ofensiva ou, dependendo do caso, assédio sexual", ressalta. "Contudo, não podemos banalizar o Direito a ponto de criminalizar elogios e uma mera investida de paquera como as famosas frases 'Quer ficar comigo?' e 'Como você é linda'. Elogios não são agressões, diferentemente de grosserias e ofensas, que devem ser denunciadas", esclarece.

O QUE A MULHER DEVE FAZER

A advogada salienta que a vítima de assédio sexual deve denunciar o ofensor de forma imediata, procurando um policial militar ou dirigindo-se a uma delegacia de Polícia. Em seguida, registrar o ocorrido. "A vítima deve ser capaz de identificar o assediador, gravando suas características físicas e trajes ou até mesmo tirando uma foto deste, o que, em casos recorrentes, poderá auxiliar as autoridades na identificação do sujeito", atenta.

QUANDO O ASSÉDIO É FORJADO

Segundo Faena, o assédio forjado, ou seja, quando uma pessoa se diz vítima de assédio produzindo características falsas de uma ocorrência que não existiu, como, por exemplo, rasgando suas vestimentas e bagunçando seus cabelos, constituiu um ato de má-fé da suposta vítima, podendo caracterizar-se como crime de calúnia contra aquele que ela alega ser o assediador. "Neste caso, o suposto assediador deverá produzir provas e arrolar testemunhas para comprovar que a acusação é inverídica", instrui.

Fonte: Revista Linda - ano 9, nº 103, junho 2016 (adaptado).

Texto: Gabriel Rodrigues.

Revisão: Marielle Rodrigues de Oliveira.

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